William Carlos Williams nasceu a 17 de setembro de 1883 em Rutherford, uma cidadezinha da Nova Jersey não distante de Nova York. Seu pai era inglês de nascimento, mas, tal como o protagonista de "Adão", um dos poemas de Adam and Eve and the city [Adão e Eva e a cidade, 1936], criara-se nas Índias Ocidentais ouvindo o "murmúrio mais sombrio/ que a morte inventa especialmente/ para os homens do Norte/ aos quais os trópicos/ chegam a prender". O poeta recebeu o mesmo nome do pai, com o acréscimo de um Carlos latino em homenagem a um tio de quem copiaria também a profissão de médico. Esse tio era o irmão dileto de sua mãe, Raquel Helène, nascida em Porto Rico de origem basca e hispano-judaica e cujos últimos dias de vida o filho relembraria com sufocada emoção em "Elena", um dos Collected later poems [Poemas ulteriores reunidos, 1950]. Mulher inteligente e sensível, Raquel tinha talento para a pintura, tanto assim que o irmão médico, enquanto pôde, lhe pagou os estudos em Paris. Dela o filho herdou o gosto pelas artes plásticas, tão perceptível na visualidade dos seus poemas, vários dos quais dedicados a pintores, como os da série Pictures from Brueghel [Quadros de Brueghel, 1962].

William Carlos aprendeu as primeiras letras em Rutherford e ainda adolescente foi levado pelos pais à Europa para cursar uma escola suíça, depois o liceu Condorcet. De volta aos Estados Unidos, completou os estudos preparatórios e foi admitido em 1902, após exame especial, à Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia. Ali conheceu Ezra Pound, universitário também, e Hilda Doolittle, que com a lacônica assinatura de H. D. se tornaria um dos expoentes da poesia imagista. Já antes de diplomar-se em 1906, Williams se dedicava à literatura. Tomara então por modelo a poesia de Keats e, de par com sonetos rimados e imitações do Endymion, começava a ensaiar a mão no verso livre aprendido de Whitman. Esses tentames não agradaram a Pound, que lhe recomendou atualizar-se em matéria de poesia lendo Yeats, Browning, Francis Thompson e Swinburne, além do Golden Treasury de Palgrave, antologia por via da qual se poderia familiarizar com os mestres da poesia inglesa do passado. O magistério de Pound, com quem aprendeu a importância da direitura coloquial e da novidade de expressão em poesia, foi decisivo para Williams, a ponto de este ter considerado o início da sua amizade com aquele um marco na sua vida, tal "como a.C. e d.C.".

O primeiro livro de Williams, Poems, uma plaquete cuja edição ele pagou do próprio bolso e da qual só se venderam quatro exemplares no lançamento, saiu em 1909, quando, completada a residência médica em hospitais de Nova York, ele partia para a Europa a fim de se especializar em pediatria. Fixou-se em Leipzig, mas teve ocasião de ir a Londres visitar Pound. Em 1912 casou-se com Florence Herman em Rutherford e no ano seguinte o casal se instalava num casarão antigo da Ridge Road n° 9, onde o dr. Williams iria viver até o fim dos seus dias, a maior parte deles como clínico da população proletária da região. Os deveres de médico, que cumpria com dedicação, daí tirando inclusive matéria para seus poemas e contos, não o impedia de participar da vida literária de Nova York, fervilhante nos anos anteriores e subseqüentes à Primeira Guerra. Colaborava nas revistas da época, entre elas a Little Review, de tendência vanguardista, Poetry, mais conservadora, e Others, de que foi editor associado por algum tempo. Tomou então contato com as manifestações experimentais no campo das artes visuais. Conheceu pessoalmente Marcel Duchamp, que trouxera em 1915 para Nova York os seus ready-mades, objetos industriais como rodas de bicicleta ou vasos sanitários a que apunha um título e uma assinatura para convertê-los em objetos de arte. Um dos artistas favoritos do poeta era o cubista Juan Gris em cuja pintura ele via um empenho de retirar as coisas do mundo da experiência cotidiana, onde o automatismo da percepção as banalizava, para as intensificar aos olhos da imaginação. É fácil ver a similitude desse empenho com o do próprio Williams em tantos dos seus poemas "objetivistas°', que mais parecem instantâneos fotográficos de uma nitidez quase sobrenatural, como o famoso "O carrinho de mão vermelho", espécie de "No meio do caminho" do modernismo norte-americano. Mestre do vislumbre, como dele disse Kenneth Burke, Williams herdou da mãe pintora a qualidade que lhe louvou um dia, de poder "ver a coisa em si, sem idéias pré ou pós-concebidas, mas com uma grande intensidade de percepção".

Tal intensidade de percepção foi nele precocemente estimulada pela sua convivência com os imagistas, grupo de poetas americanos e ingleses que, mau grado a influência do Simbolismo francês, procuravam superar-lhe o pendor para o vago e o difuso por meio da criação de imagens concretas, precisas, claras. Preocupavam-se ainda, por contraposição à linguagem literariamente enfeitada, em ficar tão perto quanto possível da fala de todos os dias, utilizando-lhe os ritmos mais livres, distintos da versificação tradicional, para abordar qualquer tipo de assunto, por mais corriqueiro que fosse, particularmente os da vida contemporânea, o que fez deles "modernistas" de primeira hora. Tudo isso ia acompanhado de uma grande ênfase na concentração como a própria essência da poesia, conquanto o excesso de concentração os pudesse levar por vezes à obscuridade e não à clareza pretendida. Do seu poema tipicamente imagista "Numa estação de metrô", disse Pound, principal teórico do grupo, que se tratava de um hokku, de um "poema de uma só  imagem [...] uma forma de superposição, isto é, uma idéia assente em cima de outra". Pela sua extrema condensação, também "A acácia-meleira em flor" de Williams, sobretudo na sua segunda versão, em que os nexos gramaticais foram reduzidos ao mínimo e a verticalização dos versos de uma única palavra dá ao poema configuração de ideograma, faz lembrar a poesia japonesa.

Pound incluiu um poema de Williams na antologia imagista publicada num número de 1914 da revista Glebe. Foi ele, ademais, quem lhe sugeriu o título de Kora in Hell: improvisations [Kora no Inferno: improvisações, 1920], um volumezinho de poemas em prosa à maneira de As iluminações de Rimbaud, nos quais a descida ao reino ínfero figurada nos mitos de Perséfone, Deméter e Orfeu corresponde a um mergulho no inconsciente e a um momentâneo abandono da objetividade, ainda que para espertar a imaginação, livrando "o mundo do fato das imposições da arte", ou seja, das estilizações artísticas convencionais da experiência. E foi ainda através de Pound que Williams, numa viagem à Europa em 1924, teve ocasião de conhecer pessoalmente James Joyce, Gertrude Stein, Valéry Larbaud e Philippe Soupault, um dos fundadores do surrealismo, de quem ele traduziria para o inglês as Últimas noites em Paris. Logo depois do seu retorno aos Estados Unidos, passou a integrar o corpo médico do hospital de Passaic, cidade vizinha de Rutherford cujas cataratas lhe inspirariam o Paterson. De 1925 é um livro de prosa ensaística e/ou doutrinária, In the American grain [Na veia americana), livro em que, como antídoto para o cosmopolitismo das influências de vanguarda a que estava então exposto, intentava Williams "penetrar dentro da cabeça dos pais-fundadores da América" para neles surpreender o surgimento do genius loci, de um espírito criador diferencialmente americano, já que, no seu entender, havia "uma fonte, na América, para tudo quanto pensamos ou fazemos". Num livro anterior, The great American novel, pequeno romance sem enredo nem herói a não ser, metalingüisticamente, um homem que pretendia escrever um livro, dissera ele: "O inimigo da Europa é o passado. E nosso inimigo é a Europa, uma coisa que absolutamente não nos diz respeito". É bem de ver, porém, que no americanismo de Williams não havia nenhum chauvinismo nacionalista. Havia, sim, uma crença inabalável no local como único ponto de partida para o universal, pelo que ele bem poderia ter feito seu o dito de Vlamink, de ser a inteligência internacional, a estupidez
nacional e a arte local. 

Conta Williams na sua Autobiografia que desde cedo se aplicara à "redescoberta de um impulso primevo, do princípio elementar de toda arte, nas condições locais". Na "Nota do autor" com que abre seu poema maior, Paterson, compara a visada localista com a relação médico-paciente: "Este é o ofício do poeta. Não falar por vagas categorias, mas escrever de modo particular, tal como um médico trabalhando com um paciente, acerca da coisa à sua frente; descobrir o universal no particular. John Dewey havia dito (descobri-o por puro acaso) que `o local é o único universal sobre que a arte edifica' ". Os versos de abertura de Paterson reiteram a mesma ordem de idéias:

Compor um começo
com particularidades
e torná-las gerais, arrolando
a soma, por meios imperfeitos -

A expressão do local implicava o uso de uma "nova linguagem" cujo "espírito interior" era outro que não o do inglês britânico, visto envolver, para além das simples diferenças de léxico, "uma diferença de pronúncia, de entonação, de conjugação, de metáfora e expressão idiomática, a própria maneira de usar as palavras", conforme explicou Williams numa carta ao editor do New English Weekly. Daí o seu cuidado de recolher espécimes do sermo vulgaris ianque num arquivo que era "um museu vivo do idioma falado". Na sua poesia, o uso expressivo do coloquial avulta nos retratos de caracteres, de que são exemplos "O estuprador de Passenack", "As últimas palavras da minha avó inglesa" e "Elena", poemas cujo centro de interesse é a personalidade das suas protagonistas, que se vai revelando aos olhos e ouvidos do leitor não através da descrição de exterioridades e sim pelas peculiaridades da elocução delas admiravelmente estilizada pelo poeta.

Quase excusava dizer que é igualmente a preocupação localista que subjaz à deliberada trivialidade dos assuntos dos poemas de Williams. Neles, os objetos, as cenas e os figurantes anônimos do cotidiano ocupam o primeiro plano: é o operário de volta do trabalho, a azáfama de uma estação ferroviária, a viúva a lamentar sua solidão, o médico a caminho do hospital, a policromia de um vaso de flores, o lavrador passeando pelo campo, o motorista a desfrutar seu direito de passagem, a empregada doméstica de "quadris sem elegância e peitos bambos", a multidão "mortífera, aterradora" num jogo de beisebol, uma cabeça de bacalhau semi-submersa, o gato tentando escalar o armário da cozinha, o interior imaculado de uma casa de Nantucket, o sótão transfigurado pelo anúncio luminoso, uma velha comendo ameixas pela rua, a folha de papel arrastada pelo vento, a arquitetura improvisada das casas proletárias, os ramos de pinheiros queimados depois do Natal, uma cidade do interior tornada mágica pela chuva, a mulher com um carrinho de bebê diante de um banco, os clérigos almoçando num restaurante, o pardal morto pela sua própria fêmea, a obstinação da acácia-meleira, o encanto outonal de uma chaminé de fábrica, e assim por diante. O destaque dado à banalidade cotidiana é inversamente proporcional à freqüência com que os grandes temas e as alusões eruditas, cavalo de batalha da poesia de Pound e Eliot, aparecem na de Williams. Mas trata-se de uma banalidade como que fosforescente, o que leva o leitor a perguntar-se se a sua semântica se esgota de fato ali ou se é, em vez disso, um convite à imaginação para ir além do hic et nunc.  Esta questão tem a ver de perto com a dialética do visual e do metafórico na poesia de William.

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O prêmio nacional de poesia atribuído em 1950 a William Carlos Williams pela publicação do livro terceiro de Paterson e dos seus Poemas escolhidos serviu para dar um testemunho público mais amplo da repercussão da sua obra. Obra que só fez crescer ao longo dos anos, com o aparecimento de novos volumes de poesia e prosa, quer de ficção quer ensaística. Em 1951, problemas de saúde o levaram a renunciar à sua clínica, que ele deixou daí em diante a cargo de um filho também médico. Em 1952 indicaram-no para consultor de poesia da Biblioteca do Congresso; a nomeação não chegou a efetivar-se por causa de pressões políticas. Perfidamente acusado de simpatias fascistas devido à sua amizade com Pound, teve sua vida investigada pelo FBI; depois, foi o Comitê de Atividades Antiamericanas, nos tempos de McCarthy, que o fichou como comunista a pretexto de uma declaração contra a prisão de Earl Browder, dirigente do PC. Nada disso obstou a que, nos anos subseqüentes, outros importantes prêmios literários Ihe fossem conferidos. Os dois últimos, o Pulitzer de poesia e a medalha de ouro do Instituto Nacional de Artes e Letras, o foram em caráter póstumo: Williams faleceu em Rutherford, a 4 de março de 1963. Mas não sem ter tido tempo de terminar o seu opus magnum.

Concebido originariamente em quatro partes, publicadas como livros separados em 1946, 1948, 1949 e 1951 respectivamente, Paterson acabou tendo uma quinta parte, aparecida em 1959. Para dar ao leitor uma idéia do que seja esse caudaloso poema cujos milhares de versos ocupam um volume de bom tamanho, seria preciso muito mais do que os dois pequenos trechos a que as limitações de espaço aqui nos obrigaram. Caudaloso diz respeito não somente à extensão física de Paterson mas também à sua inspiração fluvial. Conforme ficou dito mais atrás, foram as cataratas do rio Passaic, perto de Rutherford, que o inspiraram ao seu autor, o qual assim lhe resumiu o argumento dos quatro primeiros livros: "Paterson é um longo poema em quatro partes - acerca de um homem ser, por si só, uma cidade, já que inicia, batalha, conquista e conclui a sua vida de maneiras que os diversos aspectos de uma cidade podem corporificar - e os detalhes de qualquer cidade, quando imaginativamente concebida, podem dar voz às mais íntimas convicções dele. A Parte Primeira introduz o caráter elementar do lugar. A Segunda Parte abrange as réplicas modernas. A Terceira buscará uma linguagem para articulá-las vocalmente, e a Quarta, o rio abaixo das cataratas, relembrará episódios - tudo o que qualquer homem pode realizar ao longo de uma vida".

Na estrutura de Paterson há alguma influência dos Cantos de Pound. A começar da ambição épica do poema longo, com o seu quantum satis de narrativo, em desafio ao dogma da brevidade lírica postulado na Filosofra da composição de Poe e perfilhado pela poética contemporânea. Dos Cantos vem outrossim a sugestão de entremear livremente verso e prosa, tanto quanto a busca de uma dicção mais próxima do balanço da prosa que do verso batido. Todavia, ao contrário do mosaico cosmopolita dos Cantos, o mosaico paródico de Paterson e estritamente norte-americano. Para poder escrever o seu poema-rio, Williams empreendeu uma exaustiva pesquisa na história da região do Passaic, compulsando cartas e jornais antigos, notícias e anúncios, registros e documentos oficiais, livros de memórias e crônicas históricas etc. Seu propósito era correlacionar o encanto selvático da região antes do advento dos europeus, o seu passado colonial e a esqualidez da sua ulterior civilização fabril num vasto painel capaz de pôr à mostra o eventual nexo de continuidade entre fases tão dissímiles. Era, em suma, a tentativa de entender (e ecoar) a voz da terra, de alcançar o significado último da aventura norte-americana. E era, simultaneamente, um esforço de entender-se a si mesmo enquanto homem do seu tempo e cantor por excelência dessa aventura onde se mesclam inextricavelmente o individual e o coletivo.

Um aspecto fundamental de Paterson que não tem escapado à atenção dos seus exegetas é a dimensão metalingüística, a qual de resto se configura como típica da literatura mais criativa do século XX. Williams a destacou inclusive no resumo de argumento há pouco transcrito quando fala do propósito da Terceira Parte de encontrar uma linguagem adequada à expressão da civilização contemporânea. O que pudesse ser esse idioleto da modernidade resumiu-o o poeta na introdução que escreveu para um livro de um amigo seu, mas em que parece estar falando de Paterson: "A verdade é que as notícias de jornal oferecem o justo incentivo para a poesia épica, a poesia dos acontecimentos. [... ] O poema épico teria de ser o nosso `jornal'. Os Cantos de Pound são um equivalente algébrico disso, mas um equivalente tão perversamente individual que não alcança ser compreendido universalmente como seria mister. [... ] Terá de ser um estilo épico conciso, de pontaria certeira. Estilo de metralhadora".

Que semelhante ideal de estilo se fosse consubstanciar numa
obra onde, melhor do que em qualquer outra do nosso tempo, o
local é sinônimo de universal, mostra que a lição de Williams foi
mais do que uma lição de casa: foi uma lição de mundo:

Parte de um estudo crítico de José Paulo Paes 
do livro Poemas, de William Carlos Williams, 
traduzido do original Selected Poems
Companhia das Letras, 1987.

william carlos williams

o poema

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