O PoemaO Poema

Velimir Khlébnikov

A obra anunciadora de Velimir Khlébnikov, não se parecia com nada do que se fizera anteriormente. Anulavam-se não só os clichês introduzidos pelo simbolismo, mas toda a linguagem convencional se desarticulava. Sua poesia parecia às vezes não ter sentido, mas, na realidade, o que ele trazia, na feliz expressão de Iúri Tinianov, era "um novo sistema semântico". Ela só não tinha sentido para quem não conseguia apreendê-lo, nem perceber nele o verdadeiro significado dos novos tempos. 

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(Comentário retirado do prefácio, escrito por Boris Schnaiderman, publicado no livro Poesia Russa Moderna - Nova Antologia - Editora Brasiliense, 1985)
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Le Pieu du Futur. 
Paris, Edições l'Age d'Home, 
1967

Choix de Poèmes 
Paris, Pierre J. Oswald, 
1967

Poesia Russa Moderna. 
Civilização Brasileira, 
Brasil, 1968

KA 
Editora Perspectiva 
Brasil, 1977.

The King of Time
Harvard University Press
USA, 1985.

Collected Works, Vol. 1 
Harvard University Press
USA, 1987.

Collected Works, Vol. 2 
Harvard University Press
USA, 1989.

Collected Works, Vol. 3 
Harvard University Press
USA, 1997.



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"Cabe aos artistas do pensamento fundar o alfabeto dos conceitos, a ordem das unidades fundamentais do pensamento - com elas se constrói o edifício da palavra."

§

"A finalidade é criar uma língua escrita comum, comum a todos os povos do terceiro satélite do Sol, fundar signos de escritura compreensíveis e aceitáveis pela totalidade da estrela povoada pelo gênero humano, perdida no cosmos."

 

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1913 - Litografia de Khlebnikov por Mayakovski
1922 - Desenho de Khlebnikov por Petr Miturich

 

O CAVALO DE PRJEVÁLSKI 1

Perseguido - Por alguém? Que sei? Não cuido.
Pela pergunta: uma vida, ... e beijos, quantos?
Pela romena, dileta do Danúbio,
E a polonesa, que os anos circuncantam.
- Fujo pata brenhas, penedias, gretas,
Vivo entre os pássaros, álacre alarido.
Feixe-de-neve é o revérbero de aletas
De asas que brilharam para os inimigos.
Eis que se avistam as rodas dos fadários,
Zunido horrível para a grei sonolenta.
Mas eu voava como roca estelária
Por ígneas, não nossas, ignotas sendas.
E quando eu tombava próximo da aurora
Os homens no espanto mudavam a face,
Estes suplicavam que eu me fosse embora,
Outros me rogando: que eu iluminasse.
Para o sal, para as estepes, onde os touros
Pastam balouçando chifres cor de treva,
E para o norte, para além, onde os troncos
Cantam como arcos de cordas retesas,
Coroado de coriscos o demônio
Voava, gênio branco, retorcendo a barba.
Ele ouve os uivos de hirsutas carantonhas
E o repicar das frigideiras de alarma.
"Sou corvo branco - dizia - e solitário,
Porém tudo, o lastro negro dos dilemas,
A alvinitente coroa de meus raios,
Tudo eu relego por um fantasma apenas:

Voar, voar, para os páramos de prata,
Ser mensageiro do bem, núncio da graça."

Junto ao poço se estilhaça
A água, para que os couros
Do arreio, na poça escassa,
Reflitam-se com seus ouros.
Correndo, cobra solerte,
O olho-d'água e o arroio
Gostariam, pouco a pouco,
De fugir e dissolver-se.
Que assim, tomadas a custo,
As botas de olhos escuros
Dela, ficassem mais verdes.
Arrolos, langor, desmaios,
A vergonha com seu tisne,
Janela, isbá, dos três lados
Ululam rebanhos pingues.
Na vara, baldes e flor,
No rio azul uma balsa.
"Toma este lenço de cor,
Minha algibeira está farta."

"Quem é ele? Que deseja?
Dedos rudes, mãos de fera!
É de mim que ele moteja
Rente à choupana paterna?
Que respondo, que contesto,
Ao moço dos olhos negros?
Cirandam dúvidas lestas!
E ao pai, direi meu segredo?"
'`É minha sina! Me abraso!"
Por que buscamos, com lábios,
O pó, varrido das tumbas,
Apagar nas chamas rubras?

Eis que para os píncaros extremos
Ergo vôo como o abutre, sinistro:
Com mirada senil considero o bulício terreno
Que, naquele instante, eu diviso.

1912

1 Este título que se consagrou, parece que não foi dado pelo poeta, mas pelo seu amigo David Burliuk.
   Segundo informação da Enciclopédia Britânica, O Cavalo de Prjeválski é a única espécie conhecida de cavalo selvagem; foi descoberto por M. M. Prjeválski, explorador tusso da Asia Central.


(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

 

O GRILO

Aleteando com a ourografia
Das veias finíssimas,
O grilo
Enche o grill do ventre-silo
Com muitas gramas e talos da ribeira.
- Pin, pin, pin! - taramela o zinziber.
Oh, cisnencanto!
Oh, ilumínios!

1908 ou 1909

(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

 

Tempos-juncos
Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
Santos, juntos.

1908 ou 1909

(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman).



A ENCANTAÇÃO PELO RISO

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

1910

(Tradução: Haroldo de Campos)

 

Quando morrem, os cavalos - respiram,
Quando morrem, as ervas - secam,
Quando morrem, os sóis - se apagam,
Quando morrem, os homens - cantam.

1913

(Tradução: Haroldo de Campos)

 

Miniatura indiana antiga.

Eis-me levado em dorso elefantino,
Palanquim no elefante virgem-fúmeo.
Todas-me-amando, novo Vixnu,
Tramam, miragem nívea, o palanquim.

Músculos de elefante, balançai,
Armadilhas de caça, magníficas,
Para que sobre a terra a que descai
Agora tombe em tromba de carícias.

Brancas miragens, vós, com manchas negras,
Mais brancas do que a flor da cerejeira.
Vossas formas fremindo estão retesas
E flexíveis como plantas da treva.

Eu, no elefante branco, Bodhisattva,
Vou como antes, tenro, pensativo.
A virgem que me vê responde grata
Com flamas que são feitas de sorrisos.

Sabei que ser o peso elefantino
Jamais, em parte alguma, foi vergonha.
Trançai-vos em cerrado palanquim
Ó vós, enfeitiçadas pelo sonho.

Difícil imitar a pata larga.
Difícil ser o dente no seu curvo.
Cantos, coroas, santo som da flauta:
Conosco, sobre nós, o Olhiazul.


1913 (?) 1

1 Texto encontrado entre os rascunhos do poeta e estabelecido por N. Khárdjiev. Escrito provavelmente em 1913, sob a inspiração de uma miniatura indiana antiga, foi publicado somente em 1940, num livro de inéditos do poeta. O cineasta S. M. Eisenstein, que não poderia ter conhecido esses versos, impressionado com a mesma miniatura, reproduziu-a, com um comentário, em seu ensaio Montagem 1937, editado postumamente em 1964.

(Tradução: Haroldo de Campos)



Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercancia.

1914

(Tradução: Augusto de Campos)

 

Anos, paises, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas - redes; nós - os peixes;
Visões da treva - os deuses.

1916 (?)

(Tradução: Augusto de Campos)

 

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre cílios tranqüilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas.

Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a Rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos.

Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.

1918

(Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

 

Eu vi
Um vivo
Sol
Ou tom no
Outono
Só no
Sono
Azul.
Enquanto
Do canto
Dos teus calcanhares
Calcas os ares
Para o novelo
Da nebulosa,
Teu cotovelo
Em ângulo alvo
Alteando aos lábios.
Abril,
Abrir
A voz
As provas
De
Deus.
Consonha
Em vôo
Aberto
O abeto,
Colhe os
Olhos
Azuis
Com os laços
Das sobrancelhas
E dos pássaros
Cerúleos.
No anil
Há mil.

1919

(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)
                


Uma vez mais, uma vez mais
Sou para você
Uma estrela.
Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.

1919-1921

(Tradução: Augusto de Campos)

 

O ÚNICO LIVRO

Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
- como as mulheres calmucas todas as manhãs -
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
- o Volga, onde á noite celebram Rázin;
- o Nilo amarelo, onde imprecam ao Sol;
- o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
- e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
- e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
- e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
- e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
- e o fogoso Obi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
- e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice -
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
- lições de uma lei divina -
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

1920

(Tradução de Haroldo de Campos)
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