O PoemaO Poema

saber mais
.

.
Sebastião Alba
, nasceu em Braga, Portugal em 1940. Após viajar para Moçambique, passou a conviver com um importante grupo de escritores e intelectuais. Foi jornalista, guerrilheiro político, e teve uma vida bastante agitada e cheia de desilusões, com passagens por prisões e hospitais psiquiátricos. Alba passa com o tempo a viver como andarilho, acabando por morar na rua e morreendo atropelado por um motorista em Braga sua terra natal.

"um dos grandiosos deuses humildes da palavra", foi como se referiu a ele José Craveirinha, considerado o maior poeta africano e primeiro escritor moçambicano a ganhar o Prêmio Camões de Literatura.

 


itpoesia.gif (1593 bytes)

Poesias,
1965 - Quelimane

O Ritmo do Presságio,
1974 - Maputo

O Ritmo do Presságio,
1981 - Lisboa

A Noite Dividida
1982 - Lisboa

A Noite Dividida
(O Ritmo do Presságio / A Noite Dividida / O Limite Diáfano),
1996 - Lisboa

Uma Pedra ao lado da Evidência
(O Ritmo do Presságio / A Noite Dividida / O Limite Diáfano+Inédito),
2000 - Porto

Albas, 2003
(cartas, poemas e rascunhos)

Ventos da Minha Alma, 2008
(coletânea de escritos dispersos, em prosa)

itcompra.gif (2727 bytes)

"Escrevo com terrível dificuldade: reescrevo, colo, interpolo, publico um poema como quem o espelha. Armo a oficina em qualquer parte, sem tabuleta que o indique. Ninguém sabe, mas ali sua-se"
§
"Sou quem os que amo (ou detesto) pensam de mim. Pouco mais"
§
"Quem disse que o tesouro dos poetas são 'montes de papéis desarrumados / e barras de oiro quando o sol se põe'? Eu não aspiro a tanto, mas tenho alguns bens: sapatos novos, calças de ganga, uma camisa de flanela e um relógio de pulso."
§
"A Poesia foi, para mim, corso: de quando em vez, fazia abordagens. Claro que trago comigo, como qualquer pirata que se preza, o mapa desse tesouro, onde ninguém o encontrará: na pala do olho direito — com o esquerdo, não sei porquê, vi sempre melhor."

 

itfotos.gif (2446 bytes)

Robert Creeley - 1953 (foto: Jonathan Williams)
Robert Creeley

Robert Creeley

Robert Creeley
Robert Creeley
Robert Creeley
Robert Creeley

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

 

NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHA

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.

 

A UM FILHO MORTO

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.

 

O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

 

HÁ POETAS COM MUSA

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

 

GOSTO DOS AMIGOS

Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

 

EPÍLOGO

Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.

PRAIA

Entre dois domingos
a cidade oculta-nos
a lisa permanência do vento
e ele rectifica umaq duna
Mas já a luz elide
nossas olheiras do asfalto
velozes véus de areia descobrem
pequenos sarcófagos de conchas
Refugiamo-nos
Mortal só a distância
de nem um indício no mar.

 

AS CASAS CONSTROEM-SE DE SOMBRAS

As casas constroem-se de sombra
quatro sombras ao alto
longe da esfinge dos astros

Falamos das cidades
dos homens que de tão sós
as despovoam
Das casas nunca
Só as casas solitárias têm história

Giram na noite presas
à face da terra

E vede
a plasticidade das casas
ao sol
a amabilidade das casas
à porta
a incomunicabilidade das casas
sob os bombardeios.

 

CERTO DE QUE VOLTAS, CANÇÃO

Certo de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.

Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.

 

para cima

o poema

© copyright by vasco cavalcante