O PoemaO Poema


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Francis Ponge é, por excelência, o poeta das coisas que exigem definições, das coisas partidas, das coisas naturais, das coisas inanimadas e animadas. Ele descreve o universo, os meteoros, a chuva, o fogo. Encanta-se com os moluscos, ostras, caracóis. Busca a todo momento dar voz às coisas silenciosas. Traz à luz o mundo mágico da natureza. No Proemas, Ponge diz que “o homem julga a natureza absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe a não ser pelo homem”. Ele projeta, idealiza o homem harmonizado com os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o ar.

        Pedro Maciel

(Trecho de um ensaio feito por Pedro Maciel,
para o caderno "Verso & Prosa", do jornal O Globo)

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Douze petits écrits. 
Paris, Editora Gallimar, 
1926

Le parti pris de choses 
Paris, Editora Gallimar, 
1942

Proêmes. 
Paris, Editora Gallimar, 
1948

La rage de l'expression
Suiça, Editora Mermod  
1952

Le Grand Recueil
1.Lyres 2.Méthodes 3. Pièces

Paris, Editora Gallimar
1961

Pour un Malherbe 
Paris, Editora Gallimar
1965

Tome Premier
(Douze petits écrits,
Le parti pris des choses,
Proêmes,
La rage de l'expression,
Le peintre à l'étude e La Seine) 
Paris, Editora Gallimar
1965

Le savon 
Paris, Editora Gallimar
1967

Noveau recueil 
Paris, Editora Gallimar
1967

La fabrique du pré  
Genebra, Editora Skira
Paris, 1971

L'atelier contemporain
Paris, Editora Gallimar
1977

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Francis Ponge, em 1918
Francis Ponge em 1945. Foto de Izis
Francis Ponge
Francis Ponge
Francis e Odette Ponge,  Raymond  Jean, Jacques Derrida e Jean Tortel
Francis Ponge
Francis Ponge, em 1960.
Gauche original de  Braque
Max Bense e Francis Ponge, em 1959

CHUVA

A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede) descontínua, uma queda implacável mas relativamente lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação sempiterna sem vigor, uma fração intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical, grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.

(Trad: Júlio Castañon Guimarães)

 

O ENGRADADO

A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado ao transporte desses frutos que, com a mínima sufocação, adquirem fatalmente uma moléstia.
Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda que os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra.
Assim, em todas as esquinas das ruas que levam aos mercados, reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho em folha ainda, e um tanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada na via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é, em suma, dos mais simpáticos - sobre a sorte do qual, todavia, convém não repisar muito.

(Trad: Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)

 

A OSTRA

A ostra, do tamanho de um seixo mediano, tem uma aparência mais rugosa, uma cor menos uniforme, brilhantemente esbranquiçada. É um mundo recalcitrantemente fechado. Entretanto, pode-se abri-lo: é preciso então agarrá-la com um pano de prato, usar de uma faca pouco cortante, denteada, fazer várias tentativas. Os dedos curiosos ficam trinchados, as unhas se quebram: é um trabalho grosseiro. Os golpes que lhe são desferidos marcam de círculos brancos seu invólucro, como halos.
No interior encontra-se todo um mundo, de comer e de beber: sob um "firmamento" (propriamente falando) de madrepérola, os céus de cima se encurvam sobre os céus de baixo, para formar nada mais que um charco, um sachê viscoso e verdejante, que flui e reflui para a vista e o olfato, com franjas de renda negra nas bordas.
Por vezes mui raro uma fórmula peroliza em sua goela nácar, e alguém encontra logo com que se adornar.

(Trad: Ignácio Antonio Neis e Michel Peterson)

 

OS PRAZERES DA PORTA

Os reis não tocam nas portas.

Não conhecem essa ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção para recolocá-lo no lugar - ter nos braços uma porta.
... A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.
Com a mão amiga retém ainda, antes de empurrá-la decididamente e encerrar-se - o que o estalido da mola potente mas bem azeitada agradavelmente lhe assegura.

(Trad: Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)

 

O FOGO

O fogo estabelece uma classificação: primeiro, todas as chamas se encaminham em uma direção...
(Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço à frente, os pés rampantes)...
Depois, ao passo que as massas metodicamente contaminadas se aniquilam, os gases liberados vão-se transformando numa só rampa de borboletas.

(Trad: de Júlio Castañon Guimarães)

 

O PEDAÇO DE CARNE

Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, moinhos e lagares de sangue.
Tubulações, altos fornos, cubas vizinhos de martelos pilões, coxins de graxa.
O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-se.
Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.
E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas se resfriam.
Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reações químicas se produzem, liberando odores pestilenciais.


(Trad: Júlio Castañon Guimarãe
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O MOLUSCO

O molusco é um "ser-quase-uma qualidade". Ele não necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas, algo como a cor no tubo.
Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o cuidadosamente num escrínio cuja face interior é a mais bela.
Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas.
O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte.
Nada se pode fazer para tirá-lo dali vivo.
A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à palavra - e reciprocamente.
Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto.
É o caso do paguro.

(Trad: Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)

 

O INSIGNIFICANTE

"O que há de mais atrativo que o azul, a não ser uma nuvem, na dócil claridade?
Por isso prefiro ao silêncio uma teoria qualquer e, mais ainda, a uma página branca um escrito quando passa por insignificante.
É todo meu exercício e meu suspiro higiênico."


(Trad: Júlio Castañon Guimarães

 


A PAISAGEM

O horizonte, sobrelinhado com acentos vaporosos, parece escrito em pequenos caracteres, com tinta mais ou menos pálida segundo os jogos de luz.
Do que está mais próximo, não usufruo mais do que como de um quadro,
Do que está ainda mais próximo, do que como de esculturas, ou arquiteturas,
A seguir, da própria realidade das coisas a meus pés, como de alimentos, com uma sensação de verdadeira indigestão,
Até que finalmente em meu corpo tudo se engolfa e levanta vôo pela cabeça, como que por chaminé que desembocasse em pleno céu.

(Trad: Júlio Castañon Guimarães)

 


MY CREATIVE METHOD

Sidi-Madani, quinta-feira, 18 de dezembro de 1947

Sem dúvida não sou muito inteligente: em todo caso as idéias não são o meu forte. Sempre fui iludido por elas. As opiniões mais bem fundamentadas, os sistemas filosóficos mais harmoniosos (os mais bem constituídos) sempre me pareceram absolutamente frágeis, me provocaram uma certa repugnância, vazio na alma, uma penosa sensação de inconsistencia. Não me sinto de modo algum seguro das proposições que lanço durante uma discussão. As que me são opostas parecem-me quase sempre igualmente válidas; digamos, para sermos exatos: nem mais nem menos válidas. Posso ser convencido, desarmado com facilidade. E quando digo que posso ser convencido: trata-se, senão de alguma verdade, pelo menos da fragilidade de minha própria opinião. Além do mais, o valor das idéias parece-me na maioria dos casos em razão inversa ao ardor empregado para expô-las. O tom da convicção (e mesma da sinceridade) é adotado, assim me parece, tanto para convencer-se a si mesmo quanto para convencer o interlocutor, e mais ainda talvez para "substituir" a convicção. De qualquer modo, para substituir a verdade ausente das proposições emitidas. Eis o que sinto de modo bem forte.
Assim, as idéias como tal parecem-me aquilo de que sou menos capaz, e não me interessam mesmo. Vocês me dirão sem dúvida que aqui há uma idéia (uma opinião)... mas: as idéias, as opiniões me parecem dirigidas em cada um de nós por algo que não o livre-arbítrio ou o juízo. Nada me parece mas subjetivo, mais epifenomenal.
Não compreendo muito que as pessoas se jactem delas. Eu acharia insuportável que se pretendesse impô-las. Querer apresentar sua opinião como válida objetivamente, ou em termos absolutos, parece-me tão absurdo quanto afirmar por exemplo que os cabelos louros cacheados são mais "verdadeiros" que os cabelos pretos lisos, o canto do rouxinol mais perto da verdade que o relincho do cavalo. (Em compensação sou bastante propenso à formulação e talvez tenha algum dom para ela. "Eis o que você quer dizer..." e em geral obtenho daquele que falava a concordância com a fórmula que lhe proponho. Este é um dom de escritor? Talvez.)
Caso um pouco diferente é o do que chamarei de constatacões; digamos, se preferirem, as idéias experimentais. Sempre me pareceu desejável que houvesse um entendimento, senão quanto às opiniões, pelo menos quanto a fatos bem determinados, e se isso ainda parece muito pretensioso, pelo menos quanto a algumas definições sólidas.
Talvez fosse natural que com tais disposições (desgosto pelas idéias, gosto pelas definições) eu me dedicasse ao recenseamento e à definição em primeiro lugar dos objetos do mundo exterior e entre eles daqueles que constituem o universo familiar dos homens de nossa sociedade, em nossa época. E por quê, me objetarão, recomeçar o que foi feito em várias oportunidades e bem estabelecido nos dicionários e enciclopédias? Mas, responderei, por que e como é que existem vários dicionários e enciclopédias na mesma língua na mesma época e que suas definições dos mesmos objetos não são Idênticas? Sobretudo, como é que no caso parece estar mais em questão a definição das palavras que a definição de coisas? Por que posso ter essa impressão, para dizer a verdade bastante extravagante? Por que essa diferença, essa margem inconcebível entre a definição de uma palavra e a descrição da coisa que essa palavra designa?
Por que as definições dos dicionários nos parecem tão lamentavelmente desprovidas de concreto e as descrições (dos romances ou poemas, por exemplo) tão incompletas (ou muito particulares e detalhadas, ao contrário), tão arbitrárias, tão temerárias? Não poderíamos imaginar uma espécie de escritos (novos) que, situando-se mais ou menos entre os dois gêneros (definição e descrição), tomariam emprestados do primeiro sua infalibilidade, sua indubitabilidade, sua brevidade também, do segundo seu respeito pelo aspecto sensorial das coisas...

( Trad: Júlio Castañon Guimarães)

 


APOCALIPSES

1
Com a aurora a ressumar, este sinal: em minha janela, uma árvore nua.

2
Um grito esquartejou a aurora.
Ao homem que retomara o espelho, pareceu-lhe que uma nova noite o invadia.
Suplicava que lhe fosse poupada essa insustentável evidência.


(Trad: Júlio Castañon Guimarães

 

 

A SONHADORA MATÉRIA

Provavelmente tudo e todos - e nós mesmos - não sejamos mais que sonhos imediatos da divina Matéria:
Produtos textuais de sua prodigiosa imaginação.
E assim, em certo sentido, poderíamos dizer que toda a natureza, inclusive os homens, nada mais é que uma escritura; mas certo tipo de escritura; escritura "não-significativa", já que não se refere a sistema algum de significação; já que se trata de um universo indefinido: falando claramente, "imenso", sem medidas.
Ao passo que o mundo das palavras constitui um universo finito.
No entanto, já que composto por esses objetos bastante particulares e particularmente comoventes, os sons significativos e articulados de que somos capazes, que nos servem "a um só tempo" para nomear os objetos da natureza e exprimir nossos sentimentos,
Sem dúvida basta "nomear" não importa o quê - de um determinado modo - para exprimir tudo do homem e, ao mesmo tempo, glorificar a matéria, exemplo para a escritura e providência do espírito.

 

( Trad: Júlio Castañon Guimarães)


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