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César Vallejo (1892-1938)

Caesar Abraham Vallejo nasceu em 16 de Março de 1892, em Santiago de Chuco, Perú.

"Toda a vida de Vallejo é um esforço para conquistar, na própria escritura de cada poema, este alfabeto competente ou linguagem adequada: uma linguagem adequada à obscuridade da intuição, à visão das trevas não pode ser senão obscura. O poeta desce à noite e toda a noite deve ser dita no poema, o poema deve mostrá-la; ele a viu, a tocou, e pede que o escutem “em bloco”:

             e se vi, que me escutem pois, em bloco,
            
  se toquei esta mecânica, que vejam
            
                  lentamente,
            
  aos poucos, vorazmente, minhas trevas.

                                   
                                    
(De Panteão - César Vallejo)

(Américo Ferrari: Introdução a César Vallejo:
Obra Poética Completa)

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Los Heraldos Negros
(1918)

Trilce
(1922)

Nómina de huesos
(1936)

Sermón de la barbarie
(1939)

España, aparte de mí
este cálize
(1939)

Poemas humanos
(1939)

 



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"Há um timbre humano, um pulsar vital e sincero, ao qual deve propender o artista, e não importam quais disciplinas, teorias ou processos criadores suceda essa emoção, seca, natural, pura, ou seja, prepotente e eterna e não importam os recursos de estilo, maneira, procedimento etc."

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"É sabido que quanto mais pessoal (repito, não digo individual) é a sensibilidade do artista, a sua obra torna-se mais universal e coletiva".

 

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César Vallejo (23 anos)
Casa em que viveu Vallejo durante a sua infância.
César Vallejo (28 anos)
César Vallejo, em Nice
César Vallejo
Georgette Vallejo, mulher do poeta
César Vallejo
César Vallejo em Madri, 1931
César Vallejo
Máscara mortuária (16 de Abril de 1938)
César Vallejo (desenho feito por Picasso)

BARRO NU (Os Arautos Negros)

Erguem-se visagens fúnebres do lábio
como batráquios terríveis na atmosfera.
Pelo Saara azul da Substância
caminha um verso cinza, um dromedário

Fosforesce um esgar de pesadelos cruéis.
E o cego que morreu repleto de vozes
de neve. Madrugar o poeta , o nômade,
é um dia áspero para ser homem.

As Horas seguem febris e abortam
nos ângulos rubros séculos de ventura.
Quem corta o fio, quem desfaz
impiedosamente os nervos,
cordéis já gastos, na tumba?

Amor! E tu também. Pedras gastas
se delineiam na tua máscara que se rasga
Contudo, a tumba é
um sexo de mulher que conquista o homem!

(Trad. Jorge Henrique Bastos)


XIII (Trilce)

Penso em teu sexo.
Reduzido o coração, penso em teu sexo
diante do raiar maduro do dia.
Digito o botão da felicidade, está preparado.
E desaparece o sentimento antigo
degenerando com prudência.

Penso em teu sexo, o sulco mais fecundo
e harmonioso que o ventre da Sombra,
embora a Morte possa conceber e gerar
o próprio Deus.

Oh Consciência
penso, sim, no animal livre
que copula onde quer, onde pode.

Oh , escândalo de mel dos crepúsculos
oh estrondo mudo

odumodnortse!


XXIII (Trilce)

Moinho candente dos biscoitos,
pura gema infantil e inumerável, mãe.

Oh os quatro remoinhos assombrosamente
por mondar, mãe: os infelizes.
As duas irmãs, Miguel que morreu
e eu arrastando
uma trança por cada letra do alfabeto.

Repartias na sala de cima
de manhã e a tarde, trabalho em dobro,
as hóstias soberbas do tempo
para que não sobrassem
as cascas dos relógios parados à meia-noite
em ponto.

Mãe, e agora? Em qual alvéolo
ficaria, em que rebento capilar,
certa migalha que sufoca a garganta
e não quer passar. Hoje, até
os ossos puros se transformam em farinha
que não será amassada
a terna doceira do amor!
Até a sombra crua e o grande molar
cuja gengiva lateja na covinha láctea
e inadvertido lavra e fervilha, observaste tantas vezes
as mãos cerradas dos recém nascidos.

A terra há de ouvir no teu silêncio
como nos exigem
o aluguel do mundo onde nos abandonaste
e o valor daquele pão interminável.

E cobraram-nos, embora fôssemos
ainda jovens, como havias de perceber,
não poderíamos arrebatar nada.
Quando foi que nos deste algo,
Diz, Mãe?

(Trad. Jorge Henrique Bastos)


ISTO

Sucedeu
isto entre duas pálpebras; tremi
no ventre, colérico, alcalino,
parado junto ao equinócio lúbrico
ao pé do frio incêndio que me devasta.

O resvalo alcalino, digo,
mais perto do alho, sobre o sentido da calda,
no interior da ferrugem,
no ir da água e no rolar da onda.

O resvalo alcalino, também,
era enorme na montagem colossal
do céu.

Que dardos e arpões lançarei, se morrer
no ventre hei de dar em folhas de plátano sagrado
meus cinco ossos subalternos,
e no olhar o próprio olhar!

(Dizem que nos suspiros criam-se
acordeões ósseos, táteis;
dizem que quando morrem os que se acabam assim,
falecem fora do relógio, a mão
a segurar um sapato solitário)

Compreendendo tudo, coronel,
e tudo no sentido lastimável desta voz
castigo-me: extraio tristemente
durante a noite, as minhas próprias unhas
depois não possuo nada e falo sozinho,
inspeciono os semestres
e para encher as minhas vértebras, toco-me.


OUVE a massa, o teu cometa, escutai-os, não venhas carpir
a memória, gravíssimo cetáceo;
ouve a túnica com que estás sonâmbulo,
ouve a tua nudez, detentora do sonho.

Narra-te segurando
a cauda de fogo e os chifres
em que acaba a crina do rasto atroz;
rompe-te em círculos,
forma-te, mas em colunas curvas
descreve-te atmosférico, ser vaporoso,
ao passo reforçado do esqueleto.

A morte? Impugna todo o vestido!
A vida? Obsta parte da tua morte!
Fera venturosa, pensa,
deus desgraçado, despoja-te da fronteira.
Falaremos em breve.

(Trad. Jorge Henrique Bastos)

 

OS ANÉIS FATIGADOS

Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.

Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na áfrica de uma agonia ardente,
suicida!

Há ânsias de... não ter ânsias, Senhor,
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.

A primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.

Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!

 

PEDRA NEGRA SOBRE PEDRA BRANCA

Morrerei em Paris com aguaceiros
num dia de que já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris - daqui não saio -
numa quinta-feira, como hoje, de outono.

Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei,com todo o meu caminho, a ver-me só.

Morreu César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte

com uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...


POEMA PARA SER LIDO E CANTADO

Sei que há uma pessoa
que, dia e noite, me busca em sua mão,
encontrando-me, a cada minuto, em seu calçado.
Ignora que a noite está enterrada
atrás da cozinha com esporas?

Sei que há uma pessoa composta de minhas partes,
que eu completo sempre que o meu vulto
cavalga sua exacta pedrazinha.
Ignora que ao seu cofre
não voltará nenhuma moeda que saiu com seu retrato?

Sei o dia,
mas o sol escapou-me;
sei o acto universal que fez na cama
com alheia coragem e essa água morna, cuja
superficial frequência é uma mina.
Tão pequena é, acaso, essa pessoa
que até seus próprios pés assim a pisam?

Um gato é a fronteira entre eu e ela,
mesmo ao lado de sua malga de água.
Vejo-a pelas esquinas, abre e fecha
sua veste, antes palmeira interrogante...
que poderá fazer senão mudar de pranto?

Mas ela busca-me, busca-me. É uma história!


UM HOMEM PASSA COM UM PÃO AO OMBRO

Um homem passa com um pão ao ombro
- Vou escrever, depois, sobre o meu duplo?

Outro senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o
- Com que desplante falar da Psicanálise?

Outro entrou em meu peito com um pau na mão
- Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?

Um coxo passa dando o braço a um menino
- Vou, depois, ler André Breton?

Outro treme de frio, tosse, cospe sangue
- Convirá não aludir jamais ao Eu profundo?

Outro busca no lodo ossos e cascas
- Como escrever, depois, sobre o infinito?

Um pereiro cai de um telhado, morre, já não almoça
- Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?

Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês
- Falar, depois, da quarta dimensão?

Um banqueiro falsifica o seu balanço
- Com que cara chorar no teatro?

Um pária dorme com um pé às costas
- Falar, depois, a ninguém de Picasso?

Alguém vai num enterro a soluçar
- Como em seguida ingressar na Academia?

Alguém limpa uma espingarda na cozinha
- Com que desplante falar do mais além?

Alguém passa a contar pelos dedos
- Como falar do não-eu sem dar um grito?

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Poemas extraídos da edição:
"Antologia Poética de César Vallejo -
seleção, tradução prólogo e notas, José Bento,
ed. Relógio D'Água, Lisboa, 1992"

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