BARCAROLAS
I
A canoa lebva o homem.
O homem leva a canoa.
Canoa e homem consomem
a mesma linguagem nua.
A canoa sobre a onda.
O homem sobre a palavra.
Coisa como o rio, profunda,
sintaxe de fina lavra.
Atrás da canoa, espuma.
Atrás do homem, suor.
O alvo horizonte alonga
o verso sempre maior.
Em face do homem, trilhas
sendas do ser, riso e dor.
Canoa, língua — armadilhas
e a vida sempre menor.
II
A canoa faz do leme
seu pensamento e razão.
Assim o poema, que ao tema
imprime forma e paixão.
É certo que no seu leme
há rumos nunca traçados.
Mapas de limo. Destinos.
E verbos não inventados.
A canoa tem no leme
sua liberdade e prisão.
A forma clara e distinta,
parnasiana invenção.
Como a língua sem linguagem
é voz que em si foi calada,
o leme sem a canoa
é o nada caixa do nada.
III
Canoeiro. Poeta. A lua
avança, peixe, entre ondas.
Uma via láctea de sílabas
canta em coral com piabas.
Que noite ampara esta clara
ave palavra sem pouso,
que ousa, enrtre Ursa e a rara
estrela, traçar seu verso?
Quem faz o texto navega
vaga e refaz tudo o que
desfez em outros começos,
rema entre rumos até
que o pêndulo das marés,
nesse relógio primeiro,
resolva parar no tempo
de algum poema, o ponteiro.
IV
A canoa leva o remo.
O remo leva a canoa.
A manhã pousa na página,
ave ferida que voa...
O remo quando é somente
não pode levar o barco
somente barco. Pois tudo
é e não é. Lira e arco.
O remo é raiz, é membro
por entre estrofes e ondas,
buscando encontrar o sexo
oculto das afogadas.
O barco soletra o remo.
O remo conjuga a mão.
Contra o discurso remando,
o remoé o si, do não
V
A minha canoa vive
além de mim e da morte.
A forma é sua eternidade.
Língua e linguagem. A sorte.
Eu sou, enquanto navego,
de seu ego, nave, templo.
A sua razão de ser.
Metáfora do momento.
Oh! Geometria com alma!
Assim é minha canoa...
Boiúna boiando. Vago
lume vago que flutua.
O que ficará de nós,
além do nada que é nosso:
madeira, quilhas e ossos
cabelo, pedra e verso?
VI
Para o ativo canoeiro
o sol não é sol a sol.
O sol já é bem mais antes
de amanhecer: noite-sol.
Aurora é o rio em lançante.
Preamar, sol fluvial.
Aclara, feito a poesia,
o verbo ainda irreal...
Assim, quando vem o sol
o homem já amanheceu,
no eterno pescar palavras
no rio verbal que escolheu.
O certo é de sempre a sempre
o dia do canoeiro,
que tem na poesia seu último
instante também primeiro.
VII
O canoeiro — palavra
boiando simples no rio —
com seu olhar de boiúna
só vê pelo que não viu.
Esse ver o que seria
que o próprio ser desencanta,
vê no verso a encantaria
on a linguagem se encanta.
O canoeiro ainda vê
o tempo ser no que foi...
Assim como a igarité.
Assim como o peixe-boi.
Que sua canoa navega
na língua, espelho de lendas,
ele só vê quando o sonho
o embala em rede de rendas
VIII
A vela leva a canoa.
A canoa leva a vela.
É como ave que voa
nas penas que voam nela.
A canoa que é de vela
sem a vela não navega,
pois cada coisa precisa
daquilo com que se nega.
A vela salva a canoa
da morte, como a poesia
que enfuna as almas da língua
livrando-a da calmaria.
Cad coisa tem a outra
coisa de seu complemento.
A vela sem a canoa
é o nada solto no vento.
IX
O homem conduz o sonho.
O sonho conduz o homem,
no rio que dá noutro rio
que dá noutros rios, que somem
no rio a sumir no rio,
que passa em seu próprio nome,
no qual o homem navega
enquanto navega o homem.
Palavra que acende lâmpadas
no rio do sono, o sonho
leva em suas águas quem sonha
que águas o levam. Estranho
encanto do ser, que pensa
que sonha, quando é sonhado...
Como quem olha pro rio
mas, pelo rio, vê-se olhado.
X
A canoa sonha o homem
que seu dorso cavalgara.
A canoa sonha o homem
que no seu flanco deitara.
Fêmea de tábuas, insones
na rede da maresia,
sonha esse moçode branco
que no seu peito dormia.
Poesia é quando a linguagem
sonha. Também é poesia
a canoa que, sonhando,
faz sua própria epifania.
Palavras sonhando seres
na busca do que seria,
canoa e homem tornaram-se
mais que palavras — poesia.
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