O
triste fim do búfalo rosilho*
De sete em sete, os pássaros vão
chegando, uma espécie atrás da outra,
sem intervalos, num cordão escuro que começa
na Lua e termina no pátio da aldeia. As
araras vêm na frente. Belas e barulhentas,
pousam nas cumeeiras das malocas e vão
logo roendo a madeira e a palha com seu bico branco,
grande e muito duro. Todos
vêm ver o que está acontecendo. E
parecem incrédulos. “Ara” significa
luz e “arara” ou “guacamaio”
é papagaio grande, que se cria em árvores
altas e não deixa as copas antes da “coêma
piranga” (aurora). “Por que as danadas
se arriscam àquela hora da noite?”,
é a pergunta que se fazem os tapuios. Vencida
a estupefação, alguns homens e curumins
põem-se ao encalço das araras, atraídos
pelas cobiçadas penas verdes e vermelhas
com que enfeitam seus cocares. Mas logo se esquecem
das araras. Tucanos de bicos de osso, pernas curtas
e pretas, penas das costas azuladas, asas e rabo
anilados, frouxéis miúdos e amarelos
no peito, excelentes para forro de carapuças,
acabam de pousar nas estacas da “caiçara”
(cerca que protege a aldeia), pondo-se a assobiar
“fiu, fiu, fiu, fiu”. Piracanjuba
e outros curumins tentam agarrá-los, mas
são repelidos a bicadas. Ao assobio dos
tucanos e ao grasnar das araras junta-se o tagarelar
dos papagaios, de todos os tipos, que vão
chegando. Primeiro os grandes ajurus bocas de
gente, palradores, gordões, todos verdes,
penas pretas orlando o pescoço. Em seguida,
os ageruetés, papagaios verdadeiros, que
se levam a Portugal, verdes, encontros das asas
vermelhos, toucado da cabeça amarelo, ainda
mais faladores que os ajurus. Depois, as pequenas
curicas do mangue, fedelhos de papagaio, futriqueiras
e azucrinantes, primas do curau, pequeno pássaro
maldizente. Em seguida, os verdíssimos
periquitos, pingos de pássaro, arremedos
de papagaio, serelepes, irrequietos e barulhentos.
Por último, os maracanãs, cabeças
toucadas de amarelo, bico grosso, rabo comprido
e vermelho, gritadores, imitando o chocalho dos
maracás. Reunidos, os papagaios sobrevoam
a aldeia. No centro do terreiro, Guaratinga-açu,
Nhaêpepô-oaçu, Itajibá
e os outros chefes não atinam um motivo
para o comportamento dos pássaros. “É
o Deus do peró (português) que está
zangado pelo que lhe fizemos”, vaticina
o pajé, levando Guaratinga-açu,
para frustração dos curumins, a
suspender a caçada aos passarinhos. Temerosas,
todas as mulheres, até mesmo as velhas
gulosas, recolhem-se nas cabanas. Só os
homens e alguns curumins mais atrevidos, como
Piracanjuba, continuam olhando, do pátio
da aldeia, o escuro cordão de pássaros
que desce da Lua. “A Lua é filha
da Terra; um dia estiveram ligadas assim”,
diz Potira. E acabam de chegar os tuins, de bicos
brancos, muito pequenos, revoltos para baixo,
agitados e tagarelas, girando em círculo
e jamais parando de voar; de tão minúsculos,
só se tornam visíveis ao cruzarem
o disco amarelo da Lua. Rolas descem do Céu,
de várias espécies: picaçus
bravas, pairatis meigas, jurutis saborosas, nambus
formosas, picuepebas pequenas. Macucagoás
de pernas compridas, cheias de escamas, com feição
de galinha, pousam ao longo do chão e correm
de um canto para outro, bicando qualquer um que
se lhes barre o caminho. Chegam os mutuns de pernas
longas e pretas e se põem a correr pelo
chão, no que são imitados pelos
jacus de bico preto e tuiuiús de papo vermelho.
Grandes e saborosos, noutras ocasiões os
índios poriam cães a cosso contra
esses pássaros ou os matariam a flechadas,
mas agora, aparvalhados, não sabem o que
fazer. Os cães rosnam e latem, mas não
se atrevem a deixar as cinzas das fogueiras, onde
se enroscam. Um ou outro que desafia o medo, logo
as bicadas o convencem a retroceder. Os formosos
pássaros de água doce chegam. Primeiro
as uratingas, as garças brancas, de pernas
longas, macérrimas, bico mui comprido,
pés amarelos e um molho de plumas entre
os encontros das asas, que lhes chegam à
ponta do rabo. As upecas chegam a seguir, com
sua natureza de pato, pondo-se a bater água
no porto, juntando-se a elas as piaçocas
que moram no “aguapé” (folha
chata, redonda e espessa que cobre lagoas e margens
dos rios), e não param de saltar. Martim-pescadores,
arirambas, jacuaçus e outros comedores
de peixes também pousam n’água,
atentos ao movimento das outras aves. E chegam
as aves do mar: carabuçus, carapirás,
jaborus, urateons, atis, matuins, matuimirins,
batuíras, maçaricos, socós,
maguis. Barulhentos e hostis, apoderam-se da praia,
transformando as canoas em poleiro. Alguns tapuios,
ciumentos de suas montarias, tentam espantá-los,
mas as bicadas os fazem recuar, terminando um
deles com o olho vazado. Recolhidos nas cabanas,
as portas bem fechadas pelos “japás”
(tecidos de palha), nenhum tapuio se arrisca a
sair. Pelas frestas da parede, limitam-se a espionar
os pássaros lá fora. Mas até
isso já não conseguem, pois, como
que esgotada de parir tanto pássaro, a
Lua vai perdendo quase por completo o seu brilho.
“Iaci tapuia puxuêra reté”
(a Lua está morena e feia), diz Alkindar-miri,
ao lado de Potira. Potira não responde,
mas sei o que ela pensa. Potira está triste.
“Potira i aruru. Mbae resepe?” (Potira
está tristonha. Por quê?), pergunta
Alkindar-miri. “Xa çaciara xa icó
mahárecé xa canhimo nhahã
xa çaiçú reté uahá”
(estou triste porque perdi o que mais amava),
responde a rapariga. “Sori nde pia, peró
ndomanoi” (alegra-te, o português
não morreu), diz Alkindar-miri. “Não
morri, mas perdi meu corpo”, penso, lembrando
que vivo agora em um passarinho. Milhares de pássaros
já desceram da Lua, o cordão está
curto e fino, mas parece infindável: uranhengatás,
tiepirangas, aiaiás, jaçanãs,
tupianas, saiubuís, sanhaçus, tesourinhas,
macacicas, pipiras, tiejubas e beija-flores chegam.
Estes últimos, conhecidos por guainambis,
antes de se misturarem na multidão de pássaros,
vêm ter com Potira, como se a conhecessem.
Giram em torno dela e, um de cada vez, tocam o
biquinho comprido no rosto da cunhantã.
Fraco é o luar, mas enxergo bem os beija-flores,
os mais finos pássaros que se pode imaginar,
com o barrete sobre a cabeça, cuja cor
é impossível definir, porque, de
qualquer parte que se olhe, mostra-se vermelho,
verde, preto e de todas as outras cores. “Em
vez de sabiá, por que a minha cabeça
não se transformou em beija-flor?”,
lamento-me. Os sete bichinhos fazem piruetas rapidíssimas
em volta da cunhantã e somem num piscar
de olhos, deixando para trás apenas um
estrondo parecido ao vôo das abelhas. “Iueré
curi! Uainambi!” (adeus! beija-flores!),
despede-se Potira, adocicando a voz. Adivinhando
meu ciúme, a rapariga acaricia-me a cabeça,
mas não me alivia a tristeza, que só
aumenta com a chegada das corujas. Urucureans,
jucurutus, ubujaús, oitibós, bacuraus
de olhos grandes e três listras pardas,
e outros pássaros soturnos, pousam nos
galhos secos das árvores próximas
e aí ficam chorando seus nomes. Depois
vêm os morcegos brancos, negros, grandes,
pequenos, de todos os tamanhos; andirás
pavorosos que, nesta noite, em vez de buscarem
o calor dos corpos onde há sangue, aquietam-se
nas palhas das cabanas. E mais pássaros
vão chegando: suiriris, urandis, pexaroréns,
querejuás, pardais, muepererus, nhapupés,
saracuras, orus, anus, maguaris, aracuãa,
atiaçus, timunas, uanandis, uapicus, toatós,
uraoaçus, caracará, acauãs,
bem-te-vis. “Iaci-tatá” (o
luar) volta a clarear a noite, já se vendo
a outra ponta do cordão a pouca altura
do Céu, mas pássaros ainda chegam.
Urubus de faro apurado, cegonhas desengonçadas
e caburé-açus majestosos pousam
na árvore mais alta que há perto
da aldeia. Eis que chegam meus amigos sabiás,
primeiro os sabiás-pitangas, pardos que
nem eu, rezando seu eterno “bu, bu, bu”;
depois os sabiás-pocas, aleonados e de
canto estalante; por último, os sabiás-unas,
negros como diz o nome. Muitos pássaros
ainda pousam, até descerem os tangarás.
Ao vê-los, os outros pássaros abrem-lhes
espaço. Do tamanho dos pardais, todos pretos,
cabeças de um amarelo alaranjado muito
fino, os tangarás não cantam, mas
fazem um baile gracioso: um deles finge-se de
morto, e os outros o cercam ao redor, saltando
e fazendo um cantar de gritos estranhos que se
ouve muito longe. Ao fim do baile, o que se passa
por morto grita e dança, e se levanta,
dando um grande assobio.
*Excerto
do romance “A Noite é dos Pássaros”,
Ed. Cejup, Belém, PA, 2003.
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