A mulher, o homem e o cão
AGORA, que me vê sozinho, devo parecer infeliz, mas nem sempre foi assim; tempo houve em que a mulher, eu e o menino – e também o cão, que apareceu depois – fomos felizes, até que uma coisa estranha aconteceu. Que coisa? O senhor quer saber? Eu lhe conto, pois não houve um só dia nesses anos todos em que não tenha contado essa história para mim mesmo, mil vezes; há coisas que ainda procuro entender.
Era bem cedo, a mata se espreguiçava com os primeiros alvores da manhã, e o sol – que, como o senhor sabe, tem uma língua esponjosa – já lambia coisas e pessoas, pessoas e coisas, pois aqui tudo dá no mesmo. Peguei as ferramentas e o farnel com alimentos e disse à mulher:
– Fica na cabana até que eu volte, e não desce para o rio.
Tive de repreender o cão, que se apresentava faceiro para acompanhar-me; de uns tempos para cá, deixava o animal com a mulher. Temia não apenas os rebojos, que subiam do fundo do rio e me faziam pensar em monstros aquáticos, mas já a própria fonte das águas, de onde brotam a vida e a morte, a saúde e a enfermidade.
– Não desce para o rio, não sabes nadar! – tornei a dizer, em vão, logo se verá, pois, a partir de certa manhã, alguma coisa se alterou no comportamento da mulher, deixando-me desconfiado – e não era para menos, pois, atraída sabe lá por quê, mal saí, ela desceu para o rio.
– Marido, tudo estava tão quieto – disse-me ela depois. – Diante das águas claras do rio me despi, em grande conflito, pois me lembrei das tuas palavras: “Não desce para o rio”. O cão, que havia me seguido, acomodava-se com a cabeça sobre as patas, atento aos meus movimentos; fiquei constrangida, pois era como se estivesses ali, na vigilante figura do animal. Eu quis voltar para casa, mas acabei entrando no rio, e arrepiei-me toda quando a minha pele aquecida tocou a água fria; parecia que alguém além do cão me vigiava. Encobri a vergonha com as mãos e, em vez de sair para terra, agachei-me até que os seios roçaram a água. Por instantes, estive assim, paralisada, até que, mais tranqüila, com a nudez protegida, olhei para a outra margem e tive de novo a sensação de que alguém, sabe-se lá quem e de que ponto, me espionava. Tornei a lembrar das tuas palavras: “Fica na cabana até que eu volte”. Tive medo. Sentindo-me leve, como que fora do mundo, o corpo dentro d’água, quis me levantar, mas não consegui, o medo se transformou em terror ao lembrar de que não sabia nadar. A minha cabeça rodopiou e os olhos giraram para um ponto do rio, onde então avistei, dentro da névoa que ainda pairava sobre as águas, a coisa mais esquisita do mundo. Eram uns olhinhos negros e brilhantes, visguentos e viperinos, primitivos e sagazes, que me espreitavam. Fiz o sinal da cruz e balbuciei um “ai Jesus!” e, sentindo que ia desmaiar, tive, nesse justo momento, a visão plena da coisa que se escondia na névoa. Era uma criatura vermelha, de pele escamosa, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas.
– Salve, minha princesa e senhora! – disse a criatura à mulher, através de uma das cabeças.
Sua voz era doce e melodiosa, e pareceu-lhe bem familiar.
– Salve princesa vestida de sol, que traz a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça – continuou a criatura, por meio de outra cabeça, que se ergueu mais que as outras sobre a linha d’água.
– Marido, queria que visses, quietude tão plena reinava, como se tudo em volta dormisse, e a claridade do dia adquiriu uma tonalidade mortiça, noturna, mas noite não era, e sim dia! Então olhei para mim. Conforme disse a criatura, princesa eu era, ou pelo menos parecia ser, isso podia ver. Não estava mais nua, vestimentas e jóias de princesa adornavam o meu corpo, sete divinas sentenças ao meu cinto prendiam-se. “Salve, minha deusa, pois divina podes vir a ser, só depende de ti”, prosseguiu a criatura, movendo-se para perto de mim. Percebi o movimento, mas (incrível!) não temi. Mirei nos olhos de uma das sete cabeças da fera e foi como se através deles pudesse enxergar um mundo que jamais pude ver. “Creia-me, não sou tão feio como me pintam”, continuou a criatura, como que adivinhando a minha inquietação. Pois tais seres, marido, não conseguem penetrar os pensamentos internos do coração, desde que estes pertencem somente a Deus, mas podem, por meio de sinais procedentes do ser humano, conjeturar mais astutamente que a mais sábia das criaturas sobre o que há ou acontecerá em nossa mente. “Como saber que falas a verdade?”, indaguei. “A palavra é a verdade, não está escrito? Essa é a maior mentira do universo, pois a verdade não se revela em palavras”, ele me respondeu. “Creio nas Sagradas Escrituras”, retorqui. “A verdade, mulher, é inexprimível, mas há um lugar onde ela se mostra em plenitude”, disse a criatura.
– Que lugar é esse?
– É o mundo submerso, onde a morte e as trevas são belas.
– Deus vive lá?
– Lá vive Deus, mas em todos os lugares também.
– Será isso possível?! Pois está escrito: “Deus é a luz e não há nele treva nenhuma”.
– Lá, o bem e o mal não existem.
– Mas há um bem, que procede de Deus, e um mal, que parte do Diabo.
– Ora, princesa, como diz o ditado: é a intenção que faz a ação. O bem e o mal só existem de acordo com os benefícios ou prejuízos que trazem aos homens. O que é bom para um pode ser mau para outro. A natureza está além do bem e do mal, ignora essa concepção egoísta, um antolho que atravanca a mente dos homens e está na origem das diversas religiões. A crença de que existem, além da essência dos seres, dois fatores diametralmente opostos, é a principal causa dos desacertos terrestres, e torna-se um meio de tranqüilizar e de justificar todas as manifestações, o obstáculo fundamental à possibilidade que aparece em alguns de aperfeiçoarem sua parte essencial – disse a criatura.
– Se for assim, qualquer coisa pode ser justificada, até safadezas. Não compreendo tais assuntos, sei apenas que creio em Deus e no bem.
– Ó princesa, não te amofines com tais ninharias, também creio em Deus, tanto é que o renego; conduzir-te-ei ao mundo das bem-aventuranças – disse-me com voz ciciada a criatura. Sentindo-me amolecida, eu disse:
– Quero conhecer esse mundo.
– Vinde então, princesa minha, e salve a alegria! E que esta seja festejada unicamente pela satisfação de festejá-la, e que a vida, esta venturosa donzela, seja celebrada unicamente pela alegria da celebração, e que a morte, tão bondosa quanto injuriada, seja bendita, pelo amor ao recomeço que ela representa. Vinde comigo, princesa!
– O mundo ao qual te referes está muito longe? Preciso voltar antes do meu marido.
– Quem, minha princesa, vai ao mundo submerso, dificilmente retorna.
– Como estás aqui?
– Mas é como se não estivesse, pois deste mundo não sou; se vieres comigo, arrisca-te a deixar de sê-lo.
– Então não poderei voltar para meu marido?
– É bom que voltes, para transmitires o que te foi revelado, mas tua alma pode ficar lá no fundo, pois muitos viajaram para aquém da infância e não regressaram.
– Não compreendo...
– Pois bem, pensa: quem, tendo deixado este mundo, desejaria retornar? Quem assim estivesse, lá ficaria.
– Continuo sem compreender...
– Se fores à terra sem retorno e não discutires os seus ritos, compreenderás todas as coisas que ao homem não foi dado conhecer.
– Então partamos!
– Queres mesmo ir? És capaz de assumir por ti mesma a responsabilidade de fazer a perigosa jornada na escuridão?
– Acho que estou preparada.
– Não temes a minha grotesca figura?
– Confesso que a primeira impressão não me foi das melhores, mas já me acostumei.
– Sou o arauto da morte, ainda assim não me temes?
– Por que temeria? Na vida, a morte é absolutamente certa.
– É um bom começo. No mundo dos mortos encontrarás vida em abundância, mas verás coisas inimagináveis, e insidiosas criaturas tentarão barrar teu caminho; todavia, mal nenhum te sucederá se compreenderes que o ser e o não-ser, a vida e a morte, a beleza e a feiúra, o bem e o mal não passam de rochas que esmagam os viajantes, mas pelas quais os corajosos sempre passam.
Então, senhor, a mulher disse, com voz trêmula:
– Não percamos tempo!
E a criatura: – É só voar!
– Voar?! Mas não tenho asas! – admirou-se a mulher.
– E como chegaste até este ermo?
– Meu marido trouxe-me de canoa.
– Engano teu, vieste voando.
– Não é possível!
– Então te olha no espelho do rio – ordenou-lhe a figura.
Ela obedeceu e, estupefata, enxergou refletida nas águas em vez de mulher uma águia.
(...)
*Excerto
do romance “A mulher, o homem e o cão"”,
(Ed. LetraSelvagem, SP, 152 pág., Taubaté-SP, 2009) |