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Pintura para Platão
Eu vejo o mundo pela primeira vez
uma casa
uma uva
uma areia
um grão
a ruína desenhada
jamais achada
única casa conquistada
eu vejo, e o que eu vejo
é o modo como uma fruta
um peixe, uma coisa que sempre apodrece,
se derrama
e como esse cheiro líquido me agrada
eu vejo o mundo pela primeira vez
na essência da sombra
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uma arquitetura
para andreev veiga
contudo, da casa, resta a palavra.
e nesta, ainda há um abrigo.
essa mínima coisa
mais próxima de um ninho,
não para ave pousar
(visto que não és bem-vindo)
mas possível morada.
chão aberto.
parede caiada.
esta arquitetura:
a tua esperança de um dia poder voltar
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o grito começa
quando calam todas as palavras.
munch, pintou o mundo-surdo,
um grito como um escuro escudo.
aquele instante em que nasce
a flor do absurdo
no canteiro cego do mundo
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na rua,
por entre as quedas que andam,
o som abafado dos passos
passeiam pedaços de pássaros
o abismo fita o caminho
e a miopia que somos:
tateia, se escalavra labirinto
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porto partido
no ar,
um não escrito à mão:
adeus
um aceno,
uma cena
em que toda
palavra se esconde
por não poder falar
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nevo névoa nevoeiro
ninguém, rosto que,
um dia, todos teremos.
nevo sem legenda,
personagem da lembrança
que ainda seremos.
o sangue tornado mais
uma ferrugem, espalha-se
mancha, mapa ocluso
sem convulsões de luz,
mansa treva sem apelo.
névoa debatendo-se de joelhos,
onde o tempo ergueu-se inteiro.
e já feito árvore armada
é possível, de uma distância
que, fatal, sempre virá,
ver um bosque nesse outeiro,
onde gente vira mancha,
nevo névoa nevoeiro
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o que fica
o que fica é sempre um resto,
uma sombra, poeira do indigesto.
é o que sobra quando o não à vida espeta
e fica esse osso mudo: um cravo, uma aresta
perfurando surdo contra a voz do pensamento.
o que fica, finca fundo seu esteio.
madeira, viga erguida num momento
em que o mundo exibia-se tão cheio
de promessas (prometiam-se inteiras)
qual semente dormindo o seu verde
plantada no caminho, na sua beira,
mas quando as águas chegaram, quede?
era apenas areis, réstia daquele futuro.
e agora, do nada, desanda a brotar
uma árvore estranha, da espécie dos furos,
crescendo, cavando, querendo alcançar
a sombra que resta daquilo que fica,
buscando esgotar o que é quase mudo:
esse podre fio ressequida fita,
último eco a suportar o mundo
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a ferramenta de infernos
alguém arrancou para si dois terços da lua,
e a ferramenta de infernos foi forjada.
agora, pendida, ameaçadora como o autor,
a lâmina sorri alta e solitária
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escolha sua prisão
colha seu trigo
coma seu pão
água,
é para depois da sede
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Marcílio Costa
verso30@gmail.com |
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