NOITE ESTRELADA DE VAN GOGH

 

Na noite estrelada,
o acorde da angustiada guitarra.
O laranja ressoa
Na pele nasce violino estridente.
Da mão, o fogo redemoinha.
O gesto vermelho pare as chamas,
e uma voz negra.
Uma voz noturnamente azul
De absurdos silêncios e lembranças.

 

O CANTO ESTÉRIL

                                                                           Ao amigo Claudionor

 

No olhar, esta coisa: estar na orla de si.
Chão inflamado de asas e pálpebras.
Há um despenhadeiro de palavras lúcidas.
Sol latejante no pensamento enegrecido.
Ruído das horas ancoradas na janela.
Navegam peixes de ferro e silêncios.
Ferrugem na procura.

Na cabeça, o homem leva a carga de palavras.
(Descarrega o navio de suas sombras?)
Imprime-se a voz e seu musgo
E o ranço como vindo de alimento.
Mas a boca grita fomes.
Estampa no limo outra face:
Gerânios feitos de restos de fogo,
Um insone prometeu covarde.

Ainda há guerras a perder.
Selo de desertor nos olhos.

(e se a foice da lua decapitasse o céu?)

Alguém vomita uma música.
E tudo se cala marrom.
Porque um canto também é estéril.

 

AUTO-RETRATO DE VAN GOGH


Há uma tempestade de luz sobre o rosto,
luz escura de agonia.
O amarelo como um golpe,
um susto e um surto.
Seria tua veia na fímbria da roupa o grito vermelho?
Estaria tua orelha esvaída na borda da camisa,
aba do chapéu, barba?
Tua face bordada pelo sangue
na tela sangrada de sombras.
Na tua boca o silêncio de cabelos brancos.
A estridente cabeça observa com olhos de turbulência.

 

CORVOS SOBRE TRIGAL

 

O trigal voa sob os corvos.
Douram o voo.
As asas do outono gritam música.
A tarde lúcida se derrama.
Os dentes translúcidos do sol mastigam.
Pensamentos de escuro pingam dos corvos,
Palavra nova lavada por outra língua.
Da orelha decepada um buquê vermelho de melodias.
Ali floresceram jarros com flores sóis.
Na noite dos corvos uma solidão com um sol dentro.
Pode-se ouvir a voz laranja dos ventos.

 

A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora.”
(Clarice Lispector)

HISTÓRIAS SÉPIAS

 

No alpendre cresceu um arbusto, teimoso renovo.
A hora como uma serpente que engolisse a si mesma.
Histórias sépias silvam pelas paredes.
Outras como a calda de um pavão pairam estridentes.
Algumas, cansadas, são móveis de sossego na sala.

Há a verdade de novos acontecimentos.
As janelas clamam com olhar ninivita a complacência do tempo.
O tráfego tão vivo, viçoso ri embaixo.
São dentes com a carne da saudade e o ferro dos automóveis.
(Talvez uma música diluída na solidez do alpendre,
Velhos ossos de um poema disperso.)
Há uma ternura de despedida nas janelas,
Cor de partidas na calçada.

Que olhos viram os dias cederem à primavera?
Serena a floração de tédio e musgo no telhado.
Ficou o perfume de mornas canções.
Vozes dissolvidas no amarelo de lembranças.
Cravo murcho ainda vivo.
Cravo inverso, íntimo da melodia que silenciou.

 

MELANCÓLICO

                                                                           Ao amigo Marcos Palheta




Meu amigo é melancólico.
Os melancólicos também são pessoas interessantes, nos disse.
Cava com o olhar, na parede um mapa de filosofias.
Olha para nós como para o fundo de um poço.
Os olhos são poços com águas negras de melancolia.

Meu amigo vive um constante mergulhar.
Às vezes some numa frase.
Emerge depois como voltasse do mar,
E o mar fosse assombro.

Meu amigo retorna como quem volta ao distante.
Galga o sabor de vinhos antigos.
Quer ter um odre de poesia na adega de sua velhice.
É de temperamento plácido como a lagoa, a estrada sem viajantes,
Sol neutro na água.
Vê música no poema e sorri,
riso por vezes debulhado da angústia. 

 

COMPARAÇÃO

 

Parece um globo terrestre
Com veias azuis de mares e rios.
Parece um globo terrestre
E seus continentes marrons.
Parece um globo terrestre
Simbolizando a miséria e a riqueza.
Parece um imenso globo terrestre
A barriga do menino faminto.

 

NO SINAL

 

Camisa cinza
A listra
Branca
Imóvel
Sobre o asfalto.

O homem para
O segundo para
O pingo da chuva.

O homem olha o outro
Susto
O outro é o medonho.

A camisa cinza se move
A listra branca continua imóvel.
O outro já é um outro
Sempre medonho
Para outro homem.

 

 FEITOS

 

Atraí com o bico
do lápis
um pássaro
que sonhei.
Atirei-me ao precipício
do poema
com a pedra do sonho
amarrada ao pescoço.

 

IMPRESSÕES DA TARDE

 

Entre as fibras do peito,
espinhos da tarde.
Sereno da tua presença
na epiderme da cidade.
Depois do porto, infinita linha
(Ali dormem as horas entre farpas de esquecimento).
Úmidas as pessoas, briófitas coloridas.

As bancas de jornais guardam da chuva.
A guerra encanta colorida das revistas.
O dia é capa de chuva fechada sobre o rosto.
Saudade, fera cansada de matar.
Das janelas de um trem afiadas mãos
Cortam o ar.
Choro magro de meninos adornam portas.
E não há trens, mãos, meninos.
Tudo é fotografia descolorindo o peito.
Só há chagas quadradas dos edifícios,
Zinco da banca de revista.
O ter partido para uma guerra toda a vida.
O ter amado como se pudesse desertar.

 

Laura Nogueira
lauranog@yahoo.com.br