A DIALÉTICA DA INSTABILIDADE

Um discurso de quem sabe ouvir a voz do tempo

Certamente o conteúdo da arte é a própria pessoa do artista, sua concreta experiência, sua vida interior, sua irrepetível espiritualidade...

(PAREYSON, 1988)

O Klinger que conhecemos como um nome expressivo das artes contemporâneas paraenses, alcunhou, desde muito cedo, seus passos na crença de um mundo sem fronteiras, onde o limite era sempre o próprio homem. Essa visão antropocêntrica fê-lo, aos catorze anos, sair de sua terra natal, Óbidos, e caminhar por outras terras da Amazônia que somatizaram ao estilo e aos conteúdos encontrados hoje na sua produção artística.

Das experiências que acabaram delineando sua trajetória nas artes visuais, uma quase desconhecida produção de entalhes em madeira, denunciava sua fixação pela realidade amazônica e pela tridimensionalidade. Evocando um historicismo que remete-nos às origens da escultura pré-renascentista, sua produção dessa época (início da década de 80) caracterizava-se pela luta da forma com a matéria, numa tentativa de emancipação.

Incursões na literatura, na música e na pintura... uma inquietude que incomodava aos olhares de quem buscava nele uma definição, quem sabe para classificá-lo nessa ou naquela categoria. Entre tentativas e êxitos, o processo artístico de Klinger foi tomando forma e a maturidade do ser apresentava resultados perceptíveis na configuração da obra plástica. Uma adesão cada vez mais apaixonada impregnava seus passos.

A humanidade em Klinger fazia-se mais sentida, brotando em "Reflexões" e exposições coletivas. "Kuruatá de Inajá" é, certamente, a principal referência do encontro entre o artista e a matéria, varas, cipós, cuias, redes, canoas, terra, "insight" agora concretizado; rabiscos, esboços, descrições guardadas em pequenos pedaços de papel, em agendas e cadernos, tomaram o espaço da Galeria Theodoro Braga e instigaram espectadores, críticos, artistas que circulavam por entre objetos da cultura ribeirinha, como circulam os peixes pelos igarapés.

No Museu da Universidade Federal do Pará, Klinger experimentou pela primeira vez o prazer de trabalhar a monumentalidade, surge o que alguns chamam de "estética do precário", mas o que seriam suas obras, esculturas ou instalações? Não precisa haver no artista nenhuma preocupação em elucidar questões de ordem. Suas interrogações percorriam os caminhos do diálogo da forma com o espaço arquitetônico, que redundaram na pesquisa dos modos de fazer relacionados ao espaço ambiente.

"Terra e Transição" guarda em si uma certa perspectiva de "arte processo" e no dizer de Pareyson(...) o processo é a obra em movimento...(1993). Para klinger é também a possibilidade de estabelecer uma "perfeita dinâmica" entre museu/artista/obra, desse modo o artista propôs-se a uma vivência demorada no espaço da instituição, passando a maior parte do tempo produzindo grandes esculturas transmutadas em instalações que são importantes elementos para a discussão: museu, espaço de produção, exibição e coleção dos objetos artísticos.

Contribuições à parte, a exposição está revestida de uma formatividade exuberante, para não dizer monumental. A arquitetura das obras faz referência ao modo de construção dos primeiros colonizadores, cuja sobrevivência do ofício manteve-se na periferia de alguns municípios do estado e da própria cidade de Belém, que ainda possui construções em taipa de pilão. Na exposição este registro compõe uma visualiade transbordante a qual inquieta e fascina, ao nosso ver, por assumir uma intensionalidade sistemática, depreendida do olhar banalizado, cultivada em depurações estéticas ao longo dos anos.

A matéria impõe-se ao artista, são os mesmos - barro, cipós, varas, canoas - elementos conhecidos do fazer artístico de Klinger, propondo formas singulares ora pela unidade, ora por muito mais que dualidade. A resultante é uma multiplicação de categorias artísticas que tangenciam de forma poética, quase musical, a performance, o conceitual, o minimalismo, o "earth art", o povera; em esculturas e instalações que desvendam um ser contemporâneo universalista, cujo diálogo com a realidade próxima busca apelo na formalidade vigorosa.

O sentido de humanidade que permeia a exposição, está codificada na imaterialidade do saber tramar a matéria e seus conteúdos imanentes, fato que redimensiona o conceito de patrimônio; na relação numérica que metamorfoseia-se pela repetição de formas uma tônica do mundo atual, cibernético; na escolha do retângulo como predominância o simbolismo da instabilidade e imperfeições humanas; são fragmentos de um discurso filosófico que afloram sentimentos e idéias numa obra que transpira a própria pessoa do artista. Um homem que sabe ouvir o discurso silencioso do seu tempo.

Lidia Souza

 
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