Ó Serdespanto
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          Em Andara,
          é quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras

          e asas de areia
          vêm nos açoitar.

          Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto.
          Passando, pois, aquele homem a se chamar
assim
          Serdespanto.
          Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer

          Em Andara, pois. Mais um tendo vindo.
          De rastros, humano.

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          Mas depois ele já não andava mais de rastros,
esse Serdespanto.
          Muito alto,

          ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,

          o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso, diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá fora.

          - Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto, tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas, do sonho de estar vivo.

          Assim, a região dos murmúrios
          naquele homem ela se instalando. Se instalara.

          - Ó Serdespanto.
          Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer tombar aqui,
          caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si

           Pois depois que ele chegara ela se fora
          Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe agora habitasse em silêncio.
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Àquele que dorme sem sono

Os teus corpos, Um de Carne e Outro de Sombra,
envolve em óleos
pois são dois, e o segundo é mais real
É preciso ver num sonho
a paisagem das verdades
onde insetos vêm pousar em nossas mãos
Há palavras que os homens não dizem
Há águas tão amargas,
filho,
que se recusam a devolver às fontes
as antigas possibilidades musicais da espécie
Mas as luas da febre
estão passando

sobre os lugares onde a sombra humana ainda irá passar
Um longo caminho não é sinal de eternidade
Ninguém ainda foi ouvir o silêncio das estrelas
E não ter colhido o mel,
a um murmúrio de distância dos teus lábios,
salgou ainda mais as colméias eternas
É lenta a economia daqueles que aqui esquecem o sabor do sal
E há uns que temem a queda das unhas no inverno,
e há outros que pararam a vida
numa estação vazia
É preciso ir à paisagem das verdades: Insetos
pousariam
em nossas mãos: Os ouvidos humanos
são cavernas escuras
Agora nascerão raízes,
quando esperavas asas
E quem sabe um dia virão frutos
para te dar ao leite coagulado,
suficiente é ter nascido
Suficiente é ser a sede, pois só por isso se obteve
a dádiva
dos lagos e da gota de veneno
e um oceano de lágrimas
para encher os olhos de ternura
O que tu sabes de ti?
Somente que já vai começando a desaceleração do vento
em teus cabelos
A menos que desças no caminho, para colher as
imagens
que foram caindo da nossa memória,
estás perdido
A menos que subas, ao avistar uma montanha de
homens
que foram virados do avesso, os ossos por fora,
a carne por dentro,
e te prostres em adoração ao pó, v em que esses homens se tornarão?
Chama o vento com o ar dos teus pulmões
por amor às cinzas
Estas perdido
Entre a festa para receber,
com festa humana,
e uma esperança de ferrugens
Sob os sons das estrelas,
uma esperança de ferrugens
é o que te fere a sombra
e estás perdido
A melhor coisa que fazes
e a pior, será parar a circulação contínua da máquina
Prova uma gota do nosso sangue,
e aceita, sorrindo,
que isso aconteceu,
que foram caindo da nossa memória
a polpa e a seiva, tingidas de vermelho
Um futuro de rodas que já não rodarão
para as colheitas do destino
Entrega o nosso trem ao delírio de uma floresta
virgem a cada dia
E a voz que te diz isso:
ao menos uma vez
teremos o ferro do nosso dispensável coração

Então, por que não semear de mãos vazias?
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Os Grandes Mestres

há uma qualidade que os homens ignoram: viver é
menos
Queda que a pedra da memória
e mais do que as serpentes reconhecem: O odor humano
Está
entre as estrelas morrendo nos seus sonhos
e a terra fria afagada contra o peito
antes de lançar um sol sobre as suas vítimas
Se isso se parece um pouco com as residências do mal
e com casas perdidas em si mesmas,
foram os Cálices da espécie que deram à vida a nutrição e os tumultos
Eu falo da invenção da sede
Porque o homem é o animal de areia que dá sentido às fontes do real
e quanto a noite cai,
bebemos a água escura do ventre das mulheres

Mas vejam: o escorpião instalou as suas ferragens
O céu tem suas lágrimas em silêncio
O caracol da voz,
quando sussurra os enigmas da chuva,
sabe:
Quase nunca é tempo
Quase nunca é tempo
para o perfume do sangue
Quase nunca é tempo
de permanecer humano
Esses rios têm espelhos partidos, e tudo o que foi
submerso
é um caos perdido
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